sexta-feira, 23 de julho de 2010

A Caridade e a Justiça

No topo do calvário erguia-se uma cruz,

E pregado sobre ela o corpo de Jesus.

Noite sinistra e má. Nuvens esverdeadas

Corriam pelo ar como grandes manadas

De búfalos. A Lua, ensangüentada e fria,

Triste como um soluço imenso de Maria,

Lançava sobre a paz das coisas naturais

A merencória luz feita de brancos ais.

As árvores que outrora em dias de calor

Abrigaram Jesus, cheias de mágoa e dor,

Sonhavam, na mudez hercúlea dos heróis.

Deixaram de cantar todos os rouxinóis.

Um silêncio pesado amortalhava o mundo.

Unicamente ao longe o velho mar profundo

Descantava chorando os salmos da agonia.

Jesus, quase a expirar, cheio de dor, sorria.

Os abutres cruéis pairavam lentamente

A farejar-lhe o corpo; às vezes, de repente,

Uma nuvem toldava a face do luar,

E um clarão de gangrena, estranho, singular,

Lançava sob a cruz uns tons esverdeados.

Crocitavam ao longe os corvos esfaimados.

Mas passado um instante a Lua branca e pura,

Irrompia outra vez da grande névoa escura,

E inundavam-se então as chagas de Jesus

Nas pulverizações balsâmicas da luz.



No momento em que havia a grande escuridão

Cristo sentiu alguém aproximar-se, e então

Olhou e viu surgir, no horror das trevas mudas,

O covarde perfil sacrílego de Judas.

O traidor, contemplando o olhar do Nazareno,

Tão cheio de desdém, tão nobre, tão sereno,

Convulso de terror, fugiu... Mas nesse instante

Surgiu-lhe frente a frente um vulto de gigante,

Que bradou:

-É chegado enfim o teu castigo!

O traidor teve medo e balbuciou:-

Amigo, que pretendes de mim? Dize, por quem esperas? Quem és tu?

-“O Remorso, um caçador de feras

Disse o gigante. Eu ando há mais de seis mil anos

A caçar pelo mundo as almas dos tiranos,

Do traidor, do ladrão, do vil, do celerado;

E depois de as prender tenho-as encarcerado

Na enormíssima jaula atroz da expiação.

E quando eu entro ali na imensa confusão

De tigres, de leões, d’abutres, de chacais,

De rugidos febris e de gritos bestiais,

Fica tudo a tremer, quieto de horror e espanto:

Caim baixa a pupila e vai deitar-se a um canto.

E quando em suma algum dos monstros quer lutar

Azorrago-o com a luz febril do meu olhar,

Dando-lhe um pontapé, como num cão mendigo.

Já sabes quem eu sou, Judas; anda comigo!”


Como um preso que quer comprar um carcereiro,

Judas tirou do manto a bolsa de dinheiro,

Dizendo-lhe:

-Aqui tens, e deixa-me partir...

O gigante fitou-o e começou a rir.

Houve um grande silêncio. O infame Iscariote,

Como um negro que vê a ponta dum chicote,

Tremia. Finalmente o vulto respondeu:


“Judas, podes guardar esse dinheiro; é teu.

O ouro da traição pertence-lhe ao traidor,

Como o riso à inocência e o aroma à flor.

Esse ouro é para ti o eterno pesadelo.

Oh! Guarda-o, guarda-o bem, que eu quero derretê-lo,

E lançar-to, gota a gota, inexoravelmente,

Em cima da consciência, a pútrida, a execrável!

Com ele hei de fundir a algema inquebrantável,

A grilheta que a tua esquálida memória

Trará, arrastará pelas galés da História,

Durante a eternidade ilimitada e calma.

Essa bolsa que aí tens é o cancro da tua alma:

Já se agarrou a ti, ligou-se ao criminoso,

Como a lepra nojenta ao peito do leproso,

Como o ímã ao ferro e o verme à podridão.

Não poderás jamais largá-la da tua mão!

És traidor, assassino, hipócrita, perjuro;

A tua alma lançada em cima dum monturo

Faria nódoa. É tudo que há de mais vil,

Desde o ventre do sapo à baba do réptil.

Sai da existência! Dize à sombra que te acoite.

Monstro, procura a paz! Verme, procura a noite!

Que o Sol não veja mais um único momento

O teu olhar oblíquo e o teu perfil nojento.

Esse crime, bandido, é um crime que profana

Todas as grandes leis da consciência humana,

Todas as grandes leis da vida universal.

Esconde-te na morte, assim como um chacal

No seu covil. Adeus, causas-me nojo e asco.

Deixo dentro de ti, Judas, o teu carrasco!

És livre; adeus. Já brilha o astro matutino,

E eu, caçador feroz,, cumprindo o meu destino,

Continuarei caçando os javalis nos matos.”

E dito isto, partiu a procurar Pilatos.

Vinha rompendo ao longe a fresca madrugada

Judas, ficando só, meteu-se pela estrada,

Caminhando ligeiro, impávido, terrível,

Como um homem que leva um fim imprescritível,

Uma idéia qualquer, heróica e sobranceira;

De repente estacou. Havia uma figueira

Projetando na estrada a larga sombra escura;

Judas, desenrolando a corda da cintura,

Subiu acima, atou-a a um ramo vigoroso,

Dando um laço à garganta. O seu olhar odioso

Tinha nesse momento um brilho diamantino,

Reto como um juiz, forte como um destino.

Nisto ecoou através do negro Céu profundo

A voz celestial de Jesus moribundo,

Que lhe disse:- “Traidor, concedo-te o perdão

Além de meu carrasco és ainda o meu irmão.

Pregaste-me na cruz é o mesmo, fica em paz,

Eu costumo esquecer o mal que alguém me faz.

Eu tenho até prazer, bem vês, no sacrifício.

Não te cause remorso o meu atroz suplício,

Estes golpes cruéis, estas horríveis dores;

As chagas para mim são outras tantas flores!”

Judas fitou ao longe os cerros do calvário,

E, erguendo-se viril, soberbo, extraordinário,

Exclamou:- “Não aceito a tua compaixão.

A Justiça dos bons consiste no perdão

Um justo não perdoa. A justiça é implacável,

A minha ação é infame, hedionda, miserável;

Preguei-te nessa cruz, vendi-te aos Fariseus

Pois bem, sendo eu um monstro e sendo tu um Deus,

Vais ver como esse monstro, ó pobre Cristo nu,

é maior do que Deus, mais justo do que tu;

A tua caridade humanitária e doce,

Eu prefiro o dever terrível!” E enforcou-se.



Guerra Junqueiro

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